Ele era apenas um menino que sonhava.
Deus o fizera para sonhar, mas José teria que aprender a sonhar.
Na Graça de Deus é sempre assim:
Ele faz você para algo, mas o algo é você.
E você tem que aprender a saber quem você foi feito para ser e o resto da vida vai ter que aprender a ser quem é.
Essa é a missão do ser: saber de si em Deus e para Deus.
Assim, Deus faz o menino para sonhar, mas o menino tem que aprender a sonhar e aprender com os próprios sonhos.
O menino...é José.
Jacó é o pai do menino.
Jacó amava José com amor diferente.
Projetava nele expectativas e carinhos especiais: ele era filho de Jacó com a mulher de seus amores.
Assim, o encontro de dois seres que se amam...mas não realizam o sonho de seu próprio amor...gera um menino que sonha.
E sonha também porque o pai sonha com ele. E o pai sonha com ele por um sonho que não realizou completamente.
Mas Deus fez o menino para sonhar...
Ele sonha e conta seus sonhos.
Vê a família toda em sua total dependência.
Vê que a sua gloria seria ser a graça deles naquela geração.
Os irmãos sentem inveja.
José não entende a razão.
Afinal, ele estava apenas contando um sonho, não sonhando com o que contava.
Mas desde quando o entendimento subjuga as inseguranças do coração?
Inveja, ódio, sentimento de morte, de total extirpação da existência de José das circunvizinhanças da terra...era o que crescia em seus irmãos.
E por que?
José somente contara um sonho?!
A questão é que José era filho de um sonho que teve para a mãe dos demais irmãos—Lia e sua servas geradoras de filhos—um peso de espera, de dor, de disputas e de uma horrível carga de inveja e amargura...
Jacó amava Raquel, e não Lia.
Então, os irmãos odiavam a José também pelo amor que não tiveram nem do “pai de José” pela mãe deles e, por conseguinte, nem do “pai de José” por eles—não porque lhes faltasse amor, mas porque superabundava sobre José.
Quase ninguém quer amar...apenas por amar.
Na maioria das vezes quer-se ser amado com o amor de outros.
Poucos se atrevem a amar com seu próprio amor.
A inveja nasce mais profunda ainda quando ela se instala como inveja de amor.
Pouca coisa faz odiar mais...
Os irmãos decidiram matar a José...
Rubem, como todo bom mais velho, decide não assumir nem total responsabilidade e nem tampouco a mais completa indiferença, e diz: Não matemos, vendamos o menino!
José sumiu dos olhos dos pais para sempre.
Jamais desapareceu, todavia, da memória de seus irmãos nem um único dia.
Assim, ao venderem José para a possibilidade da morte, faziam de José o perene morador do lugar mais nervoso e sensível de suas próprias almas.
José se instalou neles como negação...um malfadado recurso do medo de admitir a verdade.
E lá vai José...
Vai de caravana em caravana...
Assustado...
Sem nome e sem chance de que em o tendo, isso tivesse qualquer importância.
Ele virara mercadoria!
Foi feito prostituto não remunerado de todos os desejos de outros senhores.
É isto que um escravo é!
E os sonho, José?
E teus irmãos?
E tua bela túnica talar?
Presente de aniversário!
Para comemorar o quê, José?
Os sonhos, no entanto, prosseguiam...
Não mais sonhava consigo mesmo...
No cativeiro José começou a perceber outros...outros seres humanos...outras dores.
Fora da casa de seu pai...entregue ao abandono da escravidão...o menino virou homem e aprendeu a enxergar de olho aberto e a sonhar bem acordado.
Suas noites, no entanto, eram repletas de sonhos, de faces, de cenários, de mensagens, de percepções e de sensibilidades.
Sua sorte começou a mudar...
Seu novo dono descobre que ele era superdotado.
Sobrava inteligência e sisudez no jovem homem.
De súbito, ele é feito o homem com todo o poder sobre os domínios de um homem poderoso no Egito.
Era muito poder.
Assim! Dá noite para o dia...tudo mudara.
José tinha poder, mas não era nada além de um robô de desejos.
Sua função era ser gestor de bens e realizador de desejos, cuidando para que o melhor não faltasse ao lugar.
Seu senso de refinamento cresceu imensamente.
O homem que fazia vir o melhor, tinha que conhecer o melhor. Assim, foi ficando também suavemente refinado.
A mistura não foi suportável...
A mulher “do homem” foi ficando alucinada...
José agora concentrava químicas irresistíveis...para as mulheres.
E ainda morava e cuidava de tudo na casa dela...?
Só não cuidava dela!
Ela decidira ser “senhora” e José tinha que “cuidar muito bem” dela também enquanto fazia tudo o mais...
Seduz, se insinua, pede, implora, agarra, arranha, toca nele, tenta tirar a roupa dele... consegue...José foge nu...ela desespera-se de ódio cobiçoso e de cobiça odiosa.
José agora tinha que conhecer outro cárcere.
Aquela situação era uma “prisão” que ele também teria que experimentar.
Agora ele teria que aprender a não sonhar com o natural objeto do desejo.
O sonhador nega a si mesmo aquele sonho.
Acorda do pesadelo...
Mergulha em tristeza...
O ciclo de desgraças iria recomeçar?
A repudiada passa a odiar no mesmo instante.
A mulher cria um caso...
José vira “José o Estripador”.
Volta para o cárcere...
E para quê?
Qual seria o propósito?
Agora ele tem que aprender a interpretar sonhos maiores.
Sua barba e cabelo crescem...
Suas noites e seus dias se misturam...
José não precisava sonhar...ele nem dormia e nem acordava...ele tinha apenas que interpretar.
Companheiros de prisão...
Conversas...
Intimidades, sonhos, desejos, saudades, arrependimentos—tudo o que rola em conversa de encarcerados.
José se envolve...
Os dramas viram histórias pessoais.
Ele sonha com aqueles que agora percebe.
Percebe seus caminhos.
Fica em silêncio.
Mas como falava muito em sonho, acaba sendo solicitado com freqüência...assim, praticou muito seu dom enquanto estava encarcerado.
O cárcere era o melhor lugar para o sonhador se transformar em interpretador.
O cárcere era o melhor lugar para o homem refinado aprender o valor de cada coisa. Inclusive a saber fazer gestão de seu próprio dom.
Ele não teria mais que sonhar e contar; e nem tampouco deveria contar tudo o que via.
Agora ele era solicitado...e nem sempre atendia.
Então...
Uma veneta na cabeça faraônica...
Subitamente dois dos amigos de cárcere de José estavam sendo chamados para um julgamento. Eram funcionários públicos esperando a decisão da corte suprema. E tudo ali era radical. Ou o indivíduo era totalmente restituído ou completamente aniquilado.
José acaba tendo que interpretar os sonhos dos colegas.
Um é morto...o outro restituído às suas funções...mas, quase como sempre, o beneficiado esqueceu-se do benfeitor.
Não era a hora ainda...
José tinha que aprender a sonhar para outros e não saber o que sonhar para si.
Silencio...
É de muito silêncio que José precisa.
Um dia a porta abriu do nada.
Faraó queria falar com José.
Ninguém sabia exatamente a razão.
José, todavia, se prepara para o melhor...
Faz a barba, dá um jeito na aparência e vai adequadamente à presença de faraó.
José começa o sonhar o melhor para si mesmo. Não quer poder, mas não quer não poder tanto...naquele lugar onde tudo era nada.
Ele quer viver...não apenas sobreviver.
E lá está ele...na frente de um “deus”.
Um “deus” atormentado por um sonho.
Um “deus” que não compreendia seu próprio sonho e que não encontrava ninguém que pudesse interpretá-lo.
Só por isto José foi lembrado...foi lembrado quando a lembrança do copeiro salvo da morte...veio a lembrar-se de José como alguém que naquele momento poderia ajudar.
Afinal, se faraó morresse, o copeiro iria junto para servi-lo na eternidade.
Boa lembrança!
Não importa como o bem venha.
O sonhador não é mais menino. Ele é um homem que sabe que o bem tem muitas caras...e que nem sempre ele é realizado por outros como bem, mas o que importa é que mesmo sendo por cobiça, ou por inveja, ou por porfia, ou para salvar a própria pele—o bem seja realizado.
Os agentes humanos são apenas seres imperfeitos vivendo suas próprias imperfeições sob perfeitos desígnios.
José interpreta o sonho de faraó.
Agora ele não apenas sabe interpretar sonhos, mas também sugerir o conselho sábio.
O que José não sabia era que ele podia interpretar o sonho do rei, mas não sabia o que o Senhor estava fazendo no coração de faraó acerca dele.
José tivera a revelação do significado do sonho de um “deus”.
Aquele “deus” teve a revelação de que o “homem escolhido”, era o próprio interprete de sonhos.
Tudo acontece conforme o sonhado.
Fartura, conforme a fartura.
Fome, conforme a desvanecência.
A fome também vinha do Senhor.
Era hora de cumprir propósitos históricos muito maiores que cabia na vida de José.
A família de Jacó teria de se transformar em uma nação. E esse “vínculo” entre eles, fazendo uma família virar um povo, só seria forjado como ferro se acontecesse em Cativeiro.
O cativeiro cura muitas coisas e realiza muitos bens.
Assim, conforme o desígnio maior, Jacó e seus filhos ficaram sem ter o que comer.
Notícias chegavam de que no Egito havia abundancia.
Os irmãos de José vão ao Egito.
José os reconhece, mas não se dá a conhecer.
O coração do sonhador duvidava entre a realidade de uma família capaz da perversidade, e a esperança da graça que faria de sua desgraça a salvação de todos eles.
Arma esquemas...maquina...cria uma “fato”...mantém um de seus irmãos no calabouço, e demanda como prova de que falam a verdade acerca de quem são, que tragam seu irmão mais novo até a sua presença—como sendo seu único atestado de idoneidade.
O irmão mais novo era seu único irmão filho de sua própria mãe. Os demais eram filhos do pai.
Outra vez os encontros e desencontros de seus quase totalmente pais—pois o que lhes faltava como irmãos era a mesma mãe—, voltam como re-interpretação chamada para um contexto, onde o antigo e de outros, se renovava como tema absolutamente pessoal para quem de fato nada deveria ter com a ver aquilo.
Eles todos haviam herdado mágoas.
Pobres daqueles que vivem de mágoas herdadas!
Assim se transferem as doenças e ódios históricos...
E cada um segue pensando que aquela guerra é sua.
Gerações desaparecem dentro dessas cadeias intermináveis.
O fato é que José ordena que um de seus irmãos seja “retido” e os demais retornem para casa com alimentos...porém com uma missão: voltar ao Egito e levar com eles o jovem Benjamim...e, ainda fazer isso poupando o velho Jacó de entrar em estado de pânico.
Afinal, o velho perdera José, e dele guardava a túnica rasgada e ensangüentada; perdera Raquel...seu amor... e em sua homenagem erguera uma sepultura no caminho de Ramá; e teve que mudar o nome da criança de cujo parto Raquel veio a morrer, de Benoni, para Benjamim—pois estava cansado de sofrer aquelas dores todas e não queria lembrar da morte da amada toda as vezes que pronunciasse o nome do filho...que nascera da morte da mãe.
Assim, idas...vindas... e alternâncias de emoções.
O que se deve saber agora é que em todos aqueles anos no Egito José teve uma vida.
Casou, teve dois filhos e estudou muitas coisas da cultura egípcia, tendo até o seu próprio copo de adivinhações, conforme a narrativa do Gêneses.
Foi aquele tempo de constituição de uma família nuclear e distante de todos os vínculos com a cultura odienta que se instalara no sentir coletivo da família de Jacó—aquilo que de fato estabeleceu-se, naturalmente, como terapia do passado para o homem José.
Naquele período sua dor foi dando lugar a serenidade...
Lentamente seu coração foi acalmando...as amarguras e incompreensões foram dando espaço para o presente se manifestar como bem e como alegria.
Assim, José marcou simbolicamente aquela nova estação de sua jornada, dando nomes aos filhos que representassem a sua própria cura.
O sonhador precisava ter suas memórias saradas.
Nasceu Manasses, e José deu ao menino um nome que o fizesse lembrar que o passado havia ficado no passado. “Esquecimento”, é o significado do nome do garoto.
Nasceu-lhe Efraim, era tempo de dupla frutificação...assim, então, chama o menino pelo nome do presente e pela esperança do futuro.
O sonhador tem que ter esperança e andar pela fé.
Assim, esquecendo as coisas que para trás haviam ficado, José prossegui para conquistar as que estavam ainda adiante dele.
Mas agora o passado voltara e suas caras eram as mesmas...apenas mais velhas e marcadas.
Rubem estava na cadeia...os outros nove irmãos voltaram ao Egito...e com eles veio Benjamim.
José agora sabia como interpretar sonhos e fazer gestão e aplicação dos sonhos que recebia. Mas, naquelas circunstancias, o sonhador estava diante de uma nova estação em seu ser.
Ele tinha que aprender aquilo que não se aprende sonhando, mas vivendo e dando à Graça a chance de se instalar como perdão, a fim de que o perdão ilumine a dor do mal um dia sentido...transformando-o em consciência da “providencia divina” para preservar algo maior.
Desse modo, o mal feito ao individuo pode contribuir para a salvação dos executores da maldade, se a vitima não se deixar vitimar pelas injustiças praticadas contra ela.
Agora, a decisão de José nada tinha ver com interpretar os sonhos de criança, mas em entender o que ele mesmo faria diante do cenário.
Estava tudo conforme o sonhado.
Mas o sonho do menino acabava sem solução acerca do que José faria quando todos estivessem sob sua total dependência.
Na maioria das vezes é nesse ponto que o sonhador pode se transformar num executor de pesadelos para os demais.
Esse era o grande desafio para José.
Sonhar era fácil.
Interpretar sonhos, um dom.
Fazer gestão aplicativa das interpretações de sonhos de outros, era muito simples...pelo menos para ele...pois ele tinha a competência.
O que era difícil era saber o que fazer com os sonhos de criança e que viraram mágoas de adultos.
José, então, toma a decisão de sonhar para seu próprio bem.
Ele tinha que decidir qual seria o resultado de seu primeiro sonho. Se manteria os irmãos deitados em sua presença ou se faria qualquer outra coisa.
Ele preferiu gritar aos prantos...pondo para fora dores que ele mesmo não podia explicar...mas cujos resultados, agora, ele começava a entender.
Assim ele brada enquanto se dissolve em lágrimas...