22 agosto 2012

2ª Edição da Revista Cinzas do Café

Vale a pena conferir:

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Estudo 175


ESTUDO 175

                                               Antônio Brasileiro

Estar com o rio não é molhar-se na água.
Nem ser leito.
É ser a água e o leito.
E o mar.
E ser as nuvens do céu.

Nosso destino é o que somos. Somos
o destino – o olho d’água
e a foz.
Somos a foz
e o ruído das águas se encontrando.

E as nuvens do céu e o homem
sentado numa pedra. E a pedra.

De José do Egito à todos que têm esperança


José, do Egito—foi como o menino veio a ficar conhecido. 
Ele era apenas um menino que sonhava. 
Deus o fizera para sonhar, mas José teria que aprender a sonhar.
Na Graça de Deus é sempre assim: 
Ele faz você para algo, mas o algo é você. 
E você tem que aprender a saber quem você foi feito para ser e o resto da vida vai ter que aprender a ser quem é.
Essa é a missão do ser: saber de si em Deus e para Deus.
Assim, Deus faz o menino para sonhar, mas o menino tem que aprender a sonhar e aprender com os próprios sonhos.
O menino...é José.
Jacó é o pai do menino. 
Jacó amava José com amor diferente. 
Projetava nele expectativas e carinhos especiais: ele era filho de Jacó com a mulher de seus amores.
Assim, o encontro de dois seres que se amam...mas não realizam o sonho de seu próprio amor...gera um menino que sonha. 
E sonha também porque o pai sonha com ele. E o pai sonha com ele por um sonho que não realizou completamente.
Mas Deus fez o menino para sonhar...
Ele sonha e conta seus sonhos.
Vê a família toda em sua total dependência.
Vê que a sua gloria seria ser a graça deles naquela geração.
Os irmãos sentem inveja.
José não entende a razão.
Afinal, ele estava apenas contando um sonho, não sonhando com o que contava.
Mas desde quando o entendimento subjuga as inseguranças do coração?
Inveja, ódio, sentimento de morte, de total extirpação da existência de José das circunvizinhanças da terra...era o que crescia em seus irmãos.
E por que?
José somente contara um sonho?!
A questão é que José era filho de um sonho que teve para a mãe dos demais irmãos—Lia e sua servas geradoras de filhos—um peso de espera, de dor, de disputas e de uma horrível carga de inveja e amargura...
Jacó amava Raquel, e não Lia.
Então, os irmãos odiavam a José também pelo amor que não tiveram nem do “pai de José” pela mãe deles e, por conseguinte, nem do “pai de José” por eles—não porque lhes faltasse amor, mas porque superabundava sobre José.
Quase ninguém quer amar...apenas por amar.
Na maioria das vezes quer-se ser amado com o amor de outros.
Poucos se atrevem a amar com seu próprio amor.
A inveja nasce mais profunda ainda quando ela se instala como inveja de amor.
Pouca coisa faz odiar mais...
Os irmãos decidiram matar a José...
Rubem, como todo bom mais velho, decide não assumir nem total responsabilidade e nem tampouco a mais completa indiferença, e diz: Não matemos, vendamos o menino!
José sumiu dos olhos dos pais para sempre.
Jamais desapareceu, todavia, da memória de seus irmãos nem um único dia.
Assim, ao venderem José para a possibilidade da morte, faziam de José o perene morador do lugar mais nervoso e sensível de suas próprias almas. 
José se instalou neles como negação...um malfadado recurso do medo de admitir a verdade.
E lá vai José...
Vai de caravana em caravana... 
Assustado... 
Sem nome e sem chance de que em o tendo, isso tivesse qualquer importância.
Ele virara mercadoria!
Foi feito prostituto não remunerado de todos os desejos de outros senhores. 
É isto que um escravo é!
E os sonho, José?
E teus irmãos?
E tua bela túnica talar? 
Presente de aniversário!
Para comemorar o quê, José?
Os sonhos, no entanto, prosseguiam...
Não mais sonhava consigo mesmo...
No cativeiro José começou a perceber outros...outros seres humanos...outras dores.
Fora da casa de seu pai...entregue ao abandono da escravidão...o menino virou homem e aprendeu a enxergar de olho aberto e a sonhar bem acordado.
Suas noites, no entanto, eram repletas de sonhos, de faces, de cenários, de mensagens, de percepções e de sensibilidades.
Sua sorte começou a mudar...
Seu novo dono descobre que ele era superdotado.
Sobrava inteligência e sisudez no jovem homem.
De súbito, ele é feito o homem com todo o poder sobre os domínios de um homem poderoso no Egito.
Era muito poder.
Assim! Dá noite para o dia...tudo mudara.
José tinha poder, mas não era nada além de um robô de desejos.
Sua função era ser gestor de bens e realizador de desejos, cuidando para que o melhor não faltasse ao lugar.
Seu senso de refinamento cresceu imensamente.
O homem que fazia vir o melhor, tinha que conhecer o melhor. Assim, foi ficando também suavemente refinado.
A mistura não foi suportável... 
A mulher “do homem” foi ficando alucinada... 
José agora concentrava químicas irresistíveis...para as mulheres. 
E ainda morava e cuidava de tudo na casa dela...?
Só não cuidava dela!
Ela decidira ser “senhora” e José tinha que “cuidar muito bem” dela também enquanto fazia tudo o mais...
Seduz, se insinua, pede, implora, agarra, arranha, toca nele, tenta tirar a roupa dele... consegue...José foge nu...ela desespera-se de ódio cobiçoso e de cobiça odiosa.
José agora tinha que conhecer outro cárcere. 
Aquela situação era uma “prisão” que ele também teria que experimentar. 
Agora ele teria que aprender a não sonhar com o natural objeto do desejo.
O sonhador nega a si mesmo aquele sonho.
Acorda do pesadelo... 
Mergulha em tristeza...
O ciclo de desgraças iria recomeçar?
A repudiada passa a odiar no mesmo instante.
A mulher cria um caso...
José vira “José o Estripador”.
Volta para o cárcere...
E para quê?
Qual seria o propósito?
Agora ele tem que aprender a interpretar sonhos maiores. 
Sua barba e cabelo crescem... 
Suas noites e seus dias se misturam... 
José não precisava sonhar...ele nem dormia e nem acordava...ele tinha apenas que interpretar.
Companheiros de prisão...
Conversas...
Intimidades, sonhos, desejos, saudades, arrependimentos—tudo o que rola em conversa de encarcerados.
José se envolve...
Os dramas viram histórias pessoais.
Ele sonha com aqueles que agora percebe.
Percebe seus caminhos.
Fica em silêncio.
Mas como falava muito em sonho, acaba sendo solicitado com freqüência...assim, praticou muito seu dom enquanto estava encarcerado.
O cárcere era o melhor lugar para o sonhador se transformar em interpretador.
O cárcere era o melhor lugar para o homem refinado aprender o valor de cada coisa. Inclusive a saber fazer gestão de seu próprio dom. 
Ele não teria mais que sonhar e contar; e nem tampouco deveria contar tudo o que via.
Agora ele era solicitado...e nem sempre atendia. 
Então...
Uma veneta na cabeça faraônica... 
Subitamente dois dos amigos de cárcere de José estavam sendo chamados para um julgamento. Eram funcionários públicos esperando a decisão da corte suprema. E tudo ali era radical. Ou o indivíduo era totalmente restituído ou completamente aniquilado.
José acaba tendo que interpretar os sonhos dos colegas. 
Um é morto...o outro restituído às suas funções...mas, quase como sempre, o beneficiado esqueceu-se do benfeitor.
Não era a hora ainda...
José tinha que aprender a sonhar para outros e não saber o que sonhar para si.
Silencio... 
É de muito silêncio que José precisa.
Um dia a porta abriu do nada.
Faraó queria falar com José.
Ninguém sabia exatamente a razão.
José, todavia, se prepara para o melhor...
Faz a barba, dá um jeito na aparência e vai adequadamente à presença de faraó. 
José começa o sonhar o melhor para si mesmo. Não quer poder, mas não quer não poder tanto...naquele lugar onde tudo era nada.
Ele quer viver...não apenas sobreviver.
E lá está ele...na frente de um “deus”.
Um “deus” atormentado por um sonho.
Um “deus” que não compreendia seu próprio sonho e que não encontrava ninguém que pudesse interpretá-lo.
Só por isto José foi lembrado...foi lembrado quando a lembrança do copeiro salvo da morte...veio a lembrar-se de José como alguém que naquele momento poderia ajudar.
Afinal, se faraó morresse, o copeiro iria junto para servi-lo na eternidade.
Boa lembrança!
Não importa como o bem venha.
O sonhador não é mais menino. Ele é um homem que sabe que o bem tem muitas caras...e que nem sempre ele é realizado por outros como bem, mas o que importa é que mesmo sendo por cobiça, ou por inveja, ou por porfia, ou para salvar a própria pele—o bem seja realizado.
Os agentes humanos são apenas seres imperfeitos vivendo suas próprias imperfeições sob perfeitos desígnios.
José interpreta o sonho de faraó.
Agora ele não apenas sabe interpretar sonhos, mas também sugerir o conselho sábio.
O que José não sabia era que ele podia interpretar o sonho do rei, mas não sabia o que o Senhor estava fazendo no coração de faraó acerca dele.
José tivera a revelação do significado do sonho de um “deus”.
Aquele “deus” teve a revelação de que o “homem escolhido”, era o próprio interprete de sonhos. 
Tudo acontece conforme o sonhado.
Fartura, conforme a fartura.
Fome, conforme a desvanecência.
A fome também vinha do Senhor.
Era hora de cumprir propósitos históricos muito maiores que cabia na vida de José.
A família de Jacó teria de se transformar em uma nação. E esse “vínculo” entre eles, fazendo uma família virar um povo, só seria forjado como ferro se acontecesse em Cativeiro.
O cativeiro cura  muitas coisas e realiza muitos bens.
Assim, conforme o desígnio maior, Jacó e seus filhos ficaram sem ter o que comer. 
Notícias chegavam de que no Egito havia abundancia. 
Os irmãos de José vão ao Egito.
José os reconhece, mas não se dá a conhecer.
O coração do sonhador duvidava entre a realidade de uma família capaz da perversidade, e a esperança da graça que faria de sua desgraça a salvação de todos eles.
Arma esquemas...maquina...cria uma “fato”...mantém um de seus irmãos no calabouço, e demanda como prova de que falam a verdade acerca de quem são, que tragam seu irmão mais novo até a sua presença—como sendo seu único atestado de idoneidade. 
O irmão mais novo era seu único irmão filho de sua própria mãe. Os demais eram filhos do pai.
Outra vez os encontros e desencontros de seus quase totalmente pais—pois o que lhes faltava como irmãos era a mesma mãe—, voltam como re-interpretação chamada para um contexto, onde o antigo e de outros, se renovava como tema absolutamente pessoal para quem de fato nada deveria ter com a ver aquilo.
Eles todos haviam herdado mágoas.
Pobres daqueles que vivem de mágoas herdadas!
Assim se transferem as doenças e ódios históricos...
E cada um segue pensando que aquela guerra é sua.
Gerações desaparecem dentro dessas cadeias intermináveis.
O fato é que José ordena que um de seus irmãos seja “retido” e os demais retornem para casa com alimentos...porém com uma missão: voltar ao Egito e levar com eles o jovem Benjamim...e, ainda fazer isso poupando o velho Jacó de entrar em estado de pânico.
Afinal, o velho perdera José, e dele guardava a túnica rasgada e ensangüentada; perdera Raquel...seu amor... e em sua homenagem erguera uma sepultura no caminho de Ramá; e teve que mudar o nome da criança de cujo parto Raquel veio a morrer, de Benoni, para Benjamim—pois estava cansado de sofrer aquelas dores todas e não queria lembrar da morte da amada toda as vezes que pronunciasse o nome do filho...que nascera da morte da mãe.
Assim, idas...vindas... e alternâncias de emoções.
O que se deve saber agora é que em todos aqueles anos no Egito José teve uma vida. 
Casou, teve dois filhos e estudou muitas coisas da cultura egípcia, tendo até o seu próprio copo de adivinhações, conforme a narrativa do Gêneses.  
Foi aquele tempo de constituição de uma família nuclear e distante de todos os vínculos com a cultura odienta que se instalara no sentir coletivo da família de Jacó—aquilo que de fato estabeleceu-se, naturalmente, como terapia do passado para o homem José.
Naquele período sua dor foi dando lugar a serenidade...
Lentamente seu coração foi acalmando...as amarguras e incompreensões foram dando espaço para o presente se manifestar como bem e como alegria.
Assim, José marcou simbolicamente aquela nova estação de sua jornada, dando nomes aos filhos que representassem a sua própria cura.
O sonhador precisava ter suas memórias saradas.
Nasceu Manasses, e José deu ao menino um nome que o fizesse lembrar que o passado havia ficado no passado. “Esquecimento”, é o significado do nome do garoto.
Nasceu-lhe Efraim, era tempo de dupla frutificação...assim, então, chama o menino pelo nome do presente e pela esperança do futuro.
O sonhador tem que ter esperança e andar pela fé.
Assim, esquecendo as coisas que para trás haviam ficado, José prossegui para conquistar as que estavam ainda adiante dele.
Mas agora o passado voltara e suas caras eram as mesmas...apenas mais velhas e marcadas.
Rubem estava na cadeia...os outros nove irmãos voltaram ao Egito...e com eles veio Benjamim.
José agora sabia como interpretar sonhos e fazer gestão e aplicação dos sonhos que recebia. Mas, naquelas circunstancias, o sonhador estava diante de uma nova estação em seu ser.
Ele tinha que aprender aquilo que não se aprende sonhando, mas vivendo e dando à Graça a chance de se instalar como perdão, a fim de que o perdão ilumine a dor do mal um dia sentido...transformando-o em consciência da “providencia divina” para preservar algo maior.
Desse modo, o mal feito ao individuo pode contribuir para a salvação dos executores da maldade, se a vitima não se deixar vitimar pelas injustiças praticadas contra ela.
Agora, a decisão de José nada tinha ver com interpretar os sonhos de criança, mas em entender o que ele mesmo faria diante do cenário.
Estava tudo conforme o sonhado.
Mas o sonho do menino acabava sem solução acerca do que José faria quando todos estivessem sob sua total dependência.
Na maioria das vezes é nesse ponto que o sonhador pode se transformar num executor de pesadelos para os demais.
Esse era o grande desafio para José.
Sonhar era fácil.
Interpretar sonhos, um dom.
Fazer gestão aplicativa das interpretações de sonhos de outros, era muito simples...pelo menos para ele...pois ele tinha a competência. 
O que era difícil era saber o que fazer com os sonhos de criança e que viraram mágoas de adultos.
José, então, toma a decisão de sonhar para seu próprio bem.
Ele tinha que decidir qual seria o resultado de seu primeiro sonho. Se manteria os irmãos deitados em sua presença ou se faria qualquer outra coisa.
Ele preferiu gritar aos prantos...pondo para fora dores que ele mesmo não podia explicar...mas cujos resultados, agora, ele começava a entender.
Assim ele brada enquanto se dissolve em lágrimas...

José! José! José é o meu nome. 
Sei os nomes de todos vocês. 
Eu sou José!
E não chorem...
Tive o discernimento de meus sonhos de criança somente aqui e agora...porque Deus é quem fez tudo isto...para que eu pudesse ser vida para vocês agora.

Assim, a família de José fica no Egito...e como moradores do lugar, cresceram em número e sobrevieram muito bem enquanto José vivia.
Os filhos de José cresceram e o sonhador não ousou ser o projetor de seus próprios sonhos sobre os filhos.
Desse modo, o sonhador se submete à benção de seu próprio pai.
Pede a Jacó que abençoe a seus filhos Manasses e Efraim. 
Mas o sonhador não era o dono de todas as profecias. 
Seu pai cruzou os braços, invertendo as benção, colocando a mão direita—que seria do primogênito—sobre a cabeça do mais moço, Efraim...e vice versa.
José tentou trocar as mãos do pai.
Jacó, todavia disse:

Eu sei...meu filho! 
Manasses também será grande...mas eu sei o que estou fazendo! 
E, quanto a ti, dou-te um declive que tomei dos meus inimigos.



A parte da herança do sonhador era um declive. 
Sonhadores sempre vivem melhor à beira do declive...
Sonhadores são psicologicamente seres das margens, da quase queda, do lugar onde se enxerga as esquinas da existência.
Normalmente esses lugares não são planuras...mas aclives ou declives.
A herança de José tinha a cara de seu estado psicológico e de sua própria constituição humana.
Jacó sabia que o Egito era apenas um passagem.
A promessa de Deus estava longe de se encerrar ali.
O tempo passou...
A vida tomou seus próprios caminhos...
Não há mais relatos de sonhos de José.
A estação dos sonhos passara também.
José estava livre apenas para ser José e viver em paz.
Ele, todavia, sabia que ali não era a terra deles e nem tampouco um lugar onde ele desejasse que seus ossos ficassem.
José envelhece.
Agora suas noites começam a ser encher de ventos, multidões, clamores, águas, desertos, jornadas infindáveis, inimigos, rios que se abrem, montanhas e vales são conquistados...
Ele acorda e ainda está no Egito.
Sabe que seus sonhos falam de coisas distantes.
Nem seus filhos estariam vivos para presenciar os eventos que como sombras lhe apareciam durante as noites.
Seus ossos...
Ele não quer ficar para trás...não deseja que nem mesmo os seus ossos fiquem no Egito, ainda que para ele se construísse uma pirâmide. 
Ele prefere que seus ossos tenham o mesmo destino incerto de um hebreu...um cruzador de fronteiras...um ser mutante e caminhante...que enterrar-se sob a estabilidade das honras do Egito.
Assim, assume pela fé que Deus os tiraria de lá...e que nesse dia nem mesmos os seus ossos seriam deixados para trás.
O sonho final do sonhador é que seus ossos durmam no chão do qual ele um dia havia sido expulso.
Os ossos de José viram seu sonho histórico mais importante. Dar ordens para que seus ossos não ficassem no Egito era a mesma coisa que profetizar o Êxodo de Israel. 
Assim, ele sofreu o cativeiro imposto pelos irmãos e suas invejas, mas não deseja ficar fora do Êxodo de sua própria descendência.
Seus sonhos só seriam felizes se seus ossos descansassem em casa.
Assim, pela fé, José deu ordens acerca de seus próprios ossos.
O sonhador agora é um homem de fé. 
Já não precisa ver para crer. 
É porque ele crê, que agora ele vê...mesmo quando não está ainda vendo nada além de sombras.
Essa é a viagem de um sonhador.
Esse foi o caminho de sua própria vida.
Com ele aprendemos que todas as coisas, conjuntamente, contribuem para o bem daqueles que amam a Deus. 
E aprendemos ainda mais... 
Ficamos sabendo que a maldade dos homens não consegue subverter nenhum dos desígnios de Deus. 
Enquanto isto...o sonhador tem que também andar pela fé.
E a morrer sem amargura no coração.
A vitória do sonhador é viver seu dom como paz em Deus.
Essa foi a viagem de um menino que virou homem. De um sonhador que aprendeu mais com a vida que com seus próprios sonhos.
Afinal, não é um dom quem ensina o seu possuidor. É o seu possuidor quem precisa aprender a usá-lo.
Essa é a razão da viagem...



Caio Fábio

Graça...



Quando vou entender a Tua graça?
Quando vou entender que não sou mais especial?
Me tratas como qualquer filho Teu
Que tem muito mais do que um dia mereceu

Quando vou aceitar que não há nada que eu faça
Que anule o Teu amor ou que compre de Ti algum favor?

21 agosto 2012

Salmos 20

Não posso deixar de postar esse texto que tanto me abençoou!
E espero, de coração, que abençoe você também!!

Salmos 20


1) NO DIA EM que você passar por sofrimentos, espero que o Senhor esteja ao seu lado! Assim, o Deus de Jacó elevará você acima dos problemas, em perfeita segurança.
2) Desejo que Ele lhe mande socorro, do santo lugar onde vive, no monte Sião.
3) Desejo que Ele Se lembre das suas ofertas de gratidão e dos sacrifícios queimados.
4) Tomara que Ele dê a você os desejos do seu coração e cumpra todos os seus planos.
5) Assim, quando soubermos que você venceu os problemas, cantaremos de alegria e agitaremos bandeiras nos ares. Tomara que o Senhor lhe dê tudo quanto você pediu a Ele.
6) Tenho plena certeza de que o Senhor salva o seu escolhido; lá do Céu, o santo lugar onde vive, Ele manda ajuda. Ele me socorre com sua mão poderosa!
7) Outras nações se orgulham de seus exércitos e armas, mas o nosso orgulho e nossa confiança é o Senhor, o nosso Deus.
8) Elas perdem as forças e são destruídas; nós, porém, ficamos em pé, firmes para sempre.
9) Ó Senhor, ouve as nossas orações! Dá vitórias ao nosso rei!

"Minhas" marcas...

"Minhas" marcas!!! Não que eu seja possessiva...não é isso!
Quando me refiro às marcas como sendo MINHAS, quero enfatizar que, de alguma maneira, marquei alguém e fui marcada por outros tantos "alguéns"...
Acredito que nada acontece por acaso!
As pessoas que passam por nossa vida, passam por um motivo. Talvez, às vezes, nem percebamos qual a razão da presença de determinada gente em nossa existência.
Provavelmente, nem sempre damos o valor devido a todos que nos rodeiam.
Alguns se vão tão desapercebidos...
Nem sequer lembramos seus nomes...
O fato é que todo deixam marcas em nós (sejam elas positivas ou negativas)...
Seja como for, nós também deixamos nossas marcas!!
E isso é extremamente desafiador, pois surgem as perguntas: quais têm sido as marcas que deixamos nas pessoas que atravessam a nossa história??
Será que são marcas de saudades, alegrias, satisfação?? Ou serão marcas de desprezo, ódio, tristeza e dor???
Espero que, sinceramente, eu possa ter marcado positivamente as pessoas que me rodeiam! E que, do mesmo modo, eu continue a abençoar todos que ainda me darão o gozo de sua presença!!

Um abraço a todos vocês que leem esse post!!

20 agosto 2012

Salmos 19


É tão bom sentir o cuidado de Deus a cada instante! Sentir que as suas misericórdias se renovam sobre nós a cada amanhecer. Mesmo não merecendo tamanho Amor, a chuva cai para todos. Mesmo não merecendo tamanha Graça o Sol esquenta a todos. Nada somos sem Ele. É Deus o nosso ar! É Deus o nosso sustento dia após dia!!

Leiam o Salmo seguinte...prova da grandeza do Senhor:

1) OS CÉUS ANUNCIAM ao mundo a glória de Deus. Eles são uma prova fantástica da capacidade de criação de Deus.
2) Cada dia que passa conta ao dia seguinte mais um pouco dessa glória; cada noite mostra à noite seguinte como se pode conhecer o Criador.
3) Esses discursos são silenciosos; não se ouve uma palavra, mas sua mensagem de louvor é ouvida em todas as partes da terra.
5) O sol mora nos céus, onde Deus traçou um caminho para ele. Dia após dia o sol percorre esse caminho, brilhante e belo como um noivo indo para seu casamento; forte e alegre como um atleta participando de uma corrida!
6) Atravessa os céus de lado a lado e nada na terra escapa ao seu calor.
7) A Lei do Senhor é perfeita; ela devolve à nossa alma as forças perdidas. A revelação da vontade de Deus é digna de confiança; ela dá sabedoria a quem estiver disposto a aprender.
8) As ordens que Deus dá aos homens são sempre certas; quem obedece, sente uma profunda alegria no coração. As regras de conduta do Senhor são bem claras e iluminam os nossos olhos.
9) A obediência a Deus nos conserva puros; é a garantia de vida eterna. As opiniões do Senhor sobre a vida são verdadeiras e justas, todas elas.
10) Valem mais do que ouro, mesmo o ouro mais fino. São mais doces que o mel pingando do favo.
11) Além de tudo isso, servem para nos corrigir quando estamos errados. Quem segue as instruções de Deus terá sucesso em tudo.
12) Apesar disso, quem sou eu para saber os pecados que se escondem em meu interior? Por favor, Senhor, perdoa estes meus pecados ocultos!
13) Não deixes que eu seja dominado pelo orgulho. Assim ficarei livre da culpa, e escaparei de cometer grandes pecados.
14) Desejo que as minhas palavras e os meus pensamentos íntimos sejam sempre agradáveis a Ti, Senhor, minha Rocha e meu Libertador!

Uma estória sem nome

Esta estória não tem nome,
Esta estória não tem jeito,
É só um risco no escuro,
É só o traço do açoite.

Este canto é como o sangue
Navegando nos meus longes.
Sou eu o Pássaro, o alcance
Do gesto além do horizonte.

Busco o fogo, busco a chama
Para além do meu cansaço.

O que busco é só o espaço,
Sua imagem,
Sua exata partitura,
E o salto além da voragem.

Onde vou, vai o meu pássaro.

Myriam Fraga

10 agosto 2012

A solidão amiga - Rubem Alves


A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão... O que mais você deseja é não estar em solidão...

Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A noite estava perdida.

Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.

Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.

Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga... Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:

“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“

Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia... Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:

“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.

Ali as palavras e os tempos
poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“

E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (...) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (...) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“

Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.

E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:

“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...“

Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.

O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão...

A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos... Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.

Mas essa conversa não acabou: vou falar depois sobre os companheiros que fazem minha solidão feliz.

(Correio Popular, 30/06/2002)

09 agosto 2012

"Meu mais recente esforço de fé não é do tipo intelectual. Eu realmente não faço mais isso. Mais cedo ou mais tarde você simplesmente descobre que há alguns caras que não acreditam em Deus e podem provar que ele não existe e alguns outros caras que acreditam em Deus e podem provar que ele existe – e a esse ponto a discussão já deixou há muito de ser sobre Deus e passou a ser sobre quem é mais inteligente; honestamente, não estou interessado nisso."

[Donald Miller]

Hoje de madrugada - Raduan Nassar


Hoje de Madrugada
Raduan Nassar

O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali ao canto; me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que .me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar ao verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhas em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.

Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa; foi una frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: "vim em busca de amor" estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. ?Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: "responda" ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada; provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: "não tenho afeto para dar", não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.

Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão ao alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um vôo largo, foi num só lance para a janela, tinha até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.

Quando ela veio da janela, ficando de novo à minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pêlos, subindo afoito, me lambendo a perna feito uma chama. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloqüente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados; dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras; a boca escancarada, e eu não minto quando digo que  não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.

Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta; logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.

O texto acima foi extraído dos "Cadernos de Literatura Brasileira", Instituto Moreira Salles - Rio de Janeiro, exemplar número 2 de setembro de 1996, pág. 56.